Este estudo caracteriza‐se como uma pesquisa histórica que tratou da emergência e da disseminação do futebol moderno na cidade de Rio Grande/RS. O recorte temporal abarcou de 1900 a 1916 e o corpus empírico foi constituído pelo jornal Echo do Sul. O estudo faz uma análise das lógicas futebolísticas da época, sem se ater demasiadamente a um ou outro clube. No período pesquisado, identificaram‐se 47 agremiações esportivas‐futebolísticas, citadas na fonte, com distintos vínculos socioeconômicos, étnicos e geográficos. Desse modo, a pesquisa concluiu que, diferentemente do que predomina na historiografia do futebol riograndino, a prática desse esporte deixou de ser exclusiva das elites ainda no fim da primeira década do século XX.
This study is characterized as a historical research reviewing the emergence and dissemination of modern football in the city of Rio Grande/RS. It encompasses the period from 1900 to 1916 and the empirical corpus was made up by a daily newspaper called Echo do Sul. The study analyzes football logics at the time, without focusing on one football club in particular. In the studied period, a total of 47 football clubs were identified in the newspaper with different socioeconomic, ethnic and geographical characteristics. Thus, the research concluded that, unlike what prevails in the history of football in the city of Rio Grande, the practice of this sport ceased to be exclusive of the elites in the first decade of the twentieth century.
Este estudio es una investigación histórica que trata sobre la llegada y difusión del fútbol moderno en la ciudad de Rio Grande/RS. Abarca el período de 1900 a 1916 y el cuerpo empírico está formado por el periódico Echo do Sul. El estudio realiza un análisis de la lógica futbolística de la época, sin centrarse en ningún club de fútbol en concreto. En el período que se estudia se ha contado hasta un total de 47 clubes de fútbol en la fuente con diferentes características socioeconómicas, étnicas y geográficas. De este modo, la investigación concluyó que, de manera distinta a lo que predomina en la historiografía del fútbol riograndino, la práctica de este deporte dejó de ser exclusiva de las elites al final de la primera década del siglo xx.
Na historiografia do futebol brasileiro, a cidade de Rio Grande/RS1 tornou‐se conhecida por ser a sede do Sport Club Rio Grande, clube de futebol mais antigo do país em atividade, fundado em 19/07/1900. Entretanto, o contexto social, histórico e futebolístico que criou as condições de emergência desse clube suscita maiores investigações acadêmicas.
A partir de meados do século XIX, Rio Grande se tornou uma das cidades brasileiras proeminentes nas trocas comerciais entre o Brasil e a Europa (Enke, 2005), além de anfitriã aos imigrantes europeus que vinham para a América do Sul. O município, que vivia os ares e as promessas da modernidade europeia, construiu um jeito de viver que possibilitou a emergência de uma cultura futebolística que fez de Rio Grande e da região um polo pioneiro do futebol brasileiro (Rigo, 2004; 2013; Mascarenhas, 2014)2.
Assim, esta pesquisa caracteriza‐se como um estudo histórico que pretendeu investigar e narrar os acontecimentos que constituíram uma singular cultura futebolística na cidade de Rio Grande no começo do século XX. Diferencia‐se, assim, daqueles estudos (Pêgas, 1972; Ramos, 2000; Cesar, 2012; Lima, 2014) que, ao tratar da história do futebol na cidade, priorizam em demasia apenas alguns clubes, geralmente Sport Club Rio Grande (1900), Sport Club São Paulo (1908) e Football Club Riograndense (1909), esquecem‐se da relevância que também tiveram outros clubes menores.
Considerações metodológicasEste estudo se inspirou na concepção de Michel Foucault, 2000a; Foucault (2009; 2000a; 2000b), para o qual a história não tem “um núcleo consistente” (Veyne, 1995, p. 138) nem uma perspectiva linear ou progressiva. Para Foucault, “os níveis possíveis da análise”, os métodos e as periodizações históricas devem ser instituídos, considerar as particularidades internas de cada objeto (Foucault, 1995, p. 10). Assim, como ressalta Rago, 1995; Rago (1995; 2002), em uma perspectiva foucaultiana, o ofício do historiador assemelha‐se ao de um narrador, um construtor de enredos e de tramas históricas.
O recorte temporal do estudo teve como referência a fundação do Sport Club Rio Grande (19/07/1900) e estendeu‐se até 1916, ano da fundação da Liga Rio‐Grandense de Football3. Essa delimitação temporal justifica‐se, principalmente, porque a partir de 1916 a Liga Rio‐Grandense passa a organizar, anualmente, o Campeonato Citadino de Futebol, acontecimento que institui novas lógicas ao futebol da cidade.
Espig (1998) ressalta a importância dos jornais como fonte historiográfica e destaca que a periodicidade faz dos jornais “verdadeiros arquivos do cotidiano” (p. 274). O autor salienta também que os jornais são uma representação da realidade de outras épocas. Desse modo, delimitamos como corpus empírico dessa pesquisa o periódico Echo do Sul, caracterizado por ser o jornal diário de maior circulação na cidade de Rio Grande, no início do século XX, que circulou ininterruptamente durante o período deste estudo4.
Os exemplares do periódico fazem parte do acervo da Biblioteca Rio‐Grandense e encontram‐se organizados em volumes encadernados por semestres de publicação. Nesse sentido, foram consultadas todas as edições disponíveis no banco de dados da biblioteca. A produção de dados contou com meticulosa leitura dos exemplares, desenvolveu anotações completas de todas as matérias relacionadas ao futebol encontradas no jornal para posterior análise. Para a feitura deste artigo foram usadas passagens de 41 edições do jornal.
Clubes pioneirosAnos antes da instauração do profissionalismo no futebol brasileiro (década de 1930), a cidade de Rio Grande já vivia um clima futebolístico5. Apesar de a fundação do Sport Club Rio Grande (1900)6 ser um acontecimento de interesse restrito (um indício disso é o fato de nenhum jornal da cidade tê‐la noticiado), alguns anos depois se inicia um movimento de fundação de clubes de futebol originários de vínculos distintos, como é o caso, por exemplo, do Sport Club Brazileiro7, fundado em 16 de agosto de 1903 (Echo do Sul, 17/08/1903) e também do Sport Club União, fundado em 30 de maio de 19028 (Echo do Sul, 28 e 29/09/1903, 05 e 13/10/1903).
Em 1905, o jornal anuncia uma partida de futebol entre os sócios do Sport Club Rio Grande e um time de jovens aprendizes marinheiros. Segundo a edição de 11 de novembro, o jogo se realizou no “terreno provisório” do Sport Club Rio Grande, atrás do cemitério católico, longe do centro da cidade, por cedência da Southern (empresa ferroviária). Na segunda‐feira seguinte, o periódico repercute o jogo vencido pelos donos da casa por 5 x 2. Todavia, mais do que o resultado da partida, chama a atenção o fato de o jornal tê‐la anunciado e, posteriormente, ter feito a cobertura do jogo, o que evidencia um aumento do interesse da imprensa pelo futebol (Echo do Sul, 13/11/1905).
Até 1905, o jornal fez referência a quatro clubes (Sport Club Rio Grande, 1900; Sport Club Brazileiro, 1902; Sport Club União, 1902; Sport Club Estudante, 1903). A partir de 1906, o futebol começa a forjar possibilidades de entretenimento para quem estava fora das quatro linhas, faz‐se referência ao “belo sexo”, forma como o jornal se referia às mulheres que, constantemente, se faziam presentes no field (campo de futebol) do Sport Club Rio Grande.
Os jogos de futebol deixam de ocorrer isoladamente e se tornam parte de festas esportivas que, além do futebol, contavam com bandas de música e outros atrativos. Em 1906, um dos fundadores do Sport Club Rio Grande, Arthur Lawson, ofereceu 11 medalhas de prata como premiação para uma série de jogos entre os sócios do clube (Echo do Sul, 03 e 19/09/1906).
Nos anos seguintes, amplia‐se o interesse pelo futebol. Em 1908, novos clubes surgem, como o Sport Club Nacional. Como indica o seu nome, trata‐se de clube não hegemonizado por descendentes das etnias europeias (alemã e inglesa), como era o Sport Club Rio Grande. Entre os membros da diretoria fundadora aparecem nomes como Waldemar Silveira, Eugênio Freitas, Jaime Silva e Eduardo dos Santos. Em sua fundação, o Sport Club Nacional contava com 70 sócios e fez “uma bela estréa reunindo no seu field trinta e tantos footballers que se bateram com enthusiasmo no espaço de três horas” (Echo do Sul, 03/08/1908.). Nos dias seguintes, o jornal anuncia jogos entre as quatro equipes do novo clube, que objetivava também dedicar‐se a outros esportes, como tênis, esgrima, críquete, boxe e diabolo (Echo do Sul, 27 e 28/07, 1°, 03, 06 e 07/08/1908).
Ainda em 1908, foi fundado também o Sport Club São Paulo. Esse mantém ainda hoje suas atividades futebolísticas9. Diferentemente do Sport Club Rio Grande, o Sport Club São Paulo nasceu com vínculos mais populares, já na sua fundação participam os operários da Companhia União Fabril (indústria têxtil). A proximidade entre fábrica‐ferrovia‐campos de futebol10 facilitou que os operários aumentassem seu interesse pelo esporte. Assim, em 4 de outubro de 1908, dentro do recinto férreo, fundou‐se o Sport Club São Paulo (Cesar, 2012).
Entre 1900 e 1916, apareceram registradas no Echo do Sul 47 agremiações esportivo‐futebolísticas pertencentes a Rio Grande. A tabela 1 mostra quais são essas agremiações, os seus respectivos anos de fundação e, daquelas que foi possível garimpar essa informação, os principais vínculos que representavam na época.
Cartografia dos clubes de futebol. Tabela constituída a partir dos dados coletados do jornal Echo do Sul (1900 ‐1916)
Clube | Fundação | Vínculos étnicos e/ou socioeconômico |
---|---|---|
Sport Club Rio Grande | 1900 | Predominantemente alemães e ingleses / classe média alta |
Sport Club União | 1902 | Comerciantes, classe média |
Sport Club Brazileiro | 1903 | Não descendentes de imigrantes (Brasileiros) |
Sport Club Estudante | 1903 | Estudantes |
Sport Club Nacional | 1908 | Não descendentes de imigrantes (Brasileiros) |
Sport Club São Paulo | 1908 | Operários e ferroviários |
Football Club Riograndense | 1909 | Classe popular, predominantemente trabalhadores do comércio e operários de fábricas |
Sport Club Operário | 1909 | Operários, predominantemente de fábricas |
Football Club Luso‐Brasileiro | 1909 | Portuguesa, trabalhadores do comércio |
Sport Club Minerva | 1910 | Operários |
Sport Club 30 de Setembro | 1910 | Estudantes |
Sport Club União Fabril | 1910 | Operários, grande maioria da Fábrica União Fabril |
Sport Club Universal | 1911 | Provavelmente com vínculos negros |
Sport Club Echo do Sul | 1911 | Vinculado ao Jornal Echo do Sul, em sua maioria trabalhadores do jornal |
América | 1911 | Classe média |
Sport Club Chileno | 1911 | * |
Sport Club dos Artistas | 1911 | Classe média |
Aymoré Football Club | 1911 | * |
Sport da Quinta | 1911 | Zona rural, distrito da Quinta |
Sport Club Povo Novo | 1911 | Zona rural, distrito de Povo Novo |
Leal Santos Foot Ball Club | 1911 | Operários, maioria da Fábrica Leal Santos |
Sport Progresso | 1911 | Proprietários do comércio |
Grêmio Esportivo Bahiano | 1912 | * |
Sport Club Estivador Rio Grande | 1912 | Operários do Porto de Rio Grande |
Sport Club Internacional | 1912 | Multiétnico, maioria descendentes de alemães, ingleses e portugueses |
Sport Club União Democrata | 1912 | Classe média alta |
Sport Club Fábrica Tullio | 1912 | Operários, maioria da fábrica Tulio |
Sport Club São Pedro | 1913 | * |
Sport Club Cruzeiro do Sul | 1913 | Provavelmente com vínculos negros |
Sport Club União Riograndense | 1913 | * |
Sport Club União Caixeiral | 1913 | Comerciários |
Football Club União Vencedor | 1913 | * |
Carlos Gomes | 1913 | * |
Football Club Militar | 1913 | Militares e parentes |
Esporte Clube Esperança | 1913 | Zona rural, distrito de Povo Novo |
Sport Club Guarany | 1913 | Estudantes da classe média alta |
Sport Club Gaspar Martins | 1913 | * |
Sport Club São João | 1913 | * |
Football Club Caxangá | 1914 | * |
Football Club Urucubaca | 1914 | * |
Football Club Urucubaca | 1914 | * |
Sport Club Baturité | 1914 | * |
Sport Club Commercial | 1915 | Comerciários |
Sport Club Palmeira | 1915 | Comerciantes classe média |
Gremio Sportivo Ideal | 1915 | Comerciantes classe média alta |
Sport Club União Brasil | 1915 | Operários (fabril) |
Sport Club Primavera | 1915 | * |
Mesmo não sendo possível identificar os principais vínculos de muitas agremiações, a partir daquelas em que isso foi possível nota‐se que elas traziam consigo mais de uma representação social. Os sobrenomes dos diretores e dos jogadores indicam alguns desses vínculos, bem como o nome de algumas agremiações. Como era o caso, por exemplo, do Sport Club Brazileiro e do Sport Club Nacional, clubes que se singularizavam pela não participação de imigrantes ou seus descendentes. Outro exemplo é o Sport Club Internacional, esse, ao contrário dos outros dois, era uma agremiação multiétnica que congregava imigrantes e descendentes de todas as etnias.
A existência de vários clubes com vínculos operários nas duas primeiras décadas – a tabela 01 aponta, pelo menos, nove com essa característica – mostra a presença de uma veia do futebol fabril na consolidação do futebol riograndino. Fato similar ao ocorrido em outras cidades que se destacam na historiografia do futebol brasileiro, como é caso do Rio de Janeiro (The Bangu Athletic Club [1904]) e de São Paulo (Votorantim Athletic Club [1902] (Antunes, 1994)11. No caso de Rio Grande, esses vínculos, em parte, foram efeitos das movimentações portuárias e de uma crescente ocupação espacial notada pelos parques fabris e de suas resultantes, o que leva ao aparecimento de bairros operários, que não só ofereciam moradias como também uma série de outros serviços e atividades, entre eles aqueles de sentido recreacionista (Martins e Pimenta, 2004).
Já a relação entre clubes e vínculos étnicos negros, similar ao ocorrido na cidade de Pelotas em 1919, quando há a fundação de uma liga específica de clubes de futebol de negros (a Liga José do Patrocínio), em Rio Grande tem‐se registro da criação de uma dessa natureza em 04/08/1926. Participaram como clubes fundadores dessa Liga: Rio Negro, Brasil, Bento Gonçalves, Democrata e Cruzeiro (Loner, 1999).
Apesar de a fundação da Liga Rio Branco ocorrer posteriormente à delimitação temporal que abrange este estudo, ela é indício que assinala a inserção dos negros no futebol da cidade, ainda nos 1920. Mesmo que esse tema seja um assunto que demandaria pesquisas mais especificas, cabe o registro de que encontramos indícios empíricos que nos permitem concluir que, entre os clubes que foram mencionados no jornal, ao menos dois deles, o Sport Club Cruzeiro do Sul (1913) e o Sport Club Universal (1911), tinham vínculos negros12.
Outra particularidade das duas primeiras décadas foi a fundação de três clubes na zona rural: Sport da Quinta (1911), no distrito da Quinta; Sport Club Povo Novo (1911) e EC Esperança (1913), ambos pertencentes ao distrito de Povo Novo13. A fundação de clubes fora do circuito principal do futebol, no início da segunda década do século XX, é outro sinal de que se acelerava o ritmo da disseminação do futebol pela cidade.
Quanto aos vínculos das agremiações, a grande maioria dos clubes constituiu‐se com mais de um vínculo identitário. Os clubes da zona rural, por exemplo, além do pertencimento de localidade, agregavam componentes étnicos e de classe social. Algo semelhante ocorria com a maioria dos clubes operário‐fabris. Essa tendência de as agremiações terem diferentes vínculos socioculturais assemelha‐se ao processo de disseminação do futebol ocorrido na cidade do Rio de Janeiro, nas três primeiras décadas do século XX (Pereira, 2000).
Sobre a frequência com que as agremiações aparecerem citadas nos jornais, fizemos uma apropriação do conceito de “sujeitos infames”, de Michel Foucault (2009), para se referir aos clubes poucas vezes citados no jornal pesquisado. Assim, classificamos como “clubes infames”: Sport Estudante (1903), Sport Club 30 de Setembro (1910), Sport da Quinta (1911), Sport Club São João (1913), FC Caxangá (1914), Sport Club União Democrata (1912) e Sport Club Fábrica Tullio (1912). Por outro lado, o clube que mais frequentava as páginas do jornal foi o Sport Club Rio Grande. Além desse, ganhavam maior visibilidade aquelas agremiações que tinham vínculos com etnias europeias e/ou com as classes média e alta da cidade.
Deslocamentos futebolísticosDamo e Ferreira (2012) tratam da importância que as “excursões”14 tiveram, na década de 1950, para preenchimento dos calendários dos clubes brasileiros. Todavia, quando se trata das excursões nas primeiras décadas do século XX, principalmente na primeira, o objetivo maior era aumentar a visibilidade do futebol. Essa foi a intenção que teve, por exemplo, o Sport Club Rio Grande nas inúmeras excursões que fez no início do século XX. De acordo com Rigo (2004), foi em uma dessas excursões do clube riograndino que se produziu o registro da primeira partida do futebol moderno na cidade de Pelotas (Rigo, 2004, p. 61). O autor destaca também que foi por meio dessas excursões “que o veterano Sport Club Rio Grande pôde desempenhar um papel importante no processo de divulgação do futebol no Rio Grande do Sul” (Rigo, 2004, p. 63).
Uma das excursões futebolísticas destacadas pelo Echo do Sul foi a 1903 para a cidade de Porto Alegre. Primeiramente, o jornal divulgou o planejamento do clube para o evento (Echo do Sul, 04/08, 25/08 e 03/09/1903). Alguns dias depois, o periódico anunciou a partida rumo à capital do estado a bordo da embarcação Aymoré (Echo do Sul, 05/09/1903). Entretanto, a nota mais significativa sobre a excursão viria três dias depois, sob a forma de telegrama enviado pelos riograndinos: “Jogamos duas partidas hoje de manhã e à tarde. Aqui desconhecido o football foi, contudo, muito apreciado pela enorme assistência. Recepção acima da expectativa” (Echo do Sul, 08/09/1903). Na historiografia do futebol gaúcho, essas partidas são tratadas como jogos que incentivaram a fundação do Grêmio de Football Porto Alegrense, que ocorreu alguns dias depois (Pires, 1967).
Outra excursão do Sport Club Rio Grande que também recebeu destaque no jornal foi Bagé‐RS, em que o clube fretou um trem15, em 1906 (Echo do Sul, 29/08/1906). De acordo com a fonte, a intenção dessa excursão era “fazer propaganda do jogo a que se dedica esperando que se funde um club congênere em Bagé, como já implantou com sucesso esse esporte salutar em Pelotas e Porto Alegre” (Echo do Sul, 29/08/1906). Alguns dias depois, o clube de Rio Grande recebeu um telegrama anunciando a fundação do Sport Club Bagé (Echo do Sul, 17/09/1906).
As excursões mostram a influência direta que o futebol riograndino teve na disseminação do esporte, no começo do século XX. Entretanto, até 1906 o Sport Club Rio Grande foi a única agremiação da cidade a excursionar. Alguns anos depois as excursões passaram a fazer parte da agenda de outros clubes. No entanto, predominavam excursões para os municípios mais próximos, como Pelotas, São Lourenço do Sul e São José do Norte. Entre as divulgadas pelo jornal aparecem: a excursão que o terceiro quadro do Sport Club São Paulo fez de barco em 1911 para São José do Norte16 (Echo do Sul, 21/10/1911); a feita pelo Grêmio Sportivo Bahiano, em 1912, à cidade de Pelotas para jogar contra o Arranca Rabo Football Club (Echo do Sul, 14/12/1912); e a que fez o Football Club Riograndense, em 1913, para São Lourenço do Sul17 (Echo do Sul, 05/11/1913).
Os clubes de Rio Grande também recebiam agremiações de outras cidades. Como aconteceu com o Sport Club Bagé, que foi a Rio Grande para retribuir uma visita ao Sport Club Rio Grande, em 1908 (Echo do Sul, 20/05/1908), e com o Esporte Clube Pelotas, que excursionou para enfrentar o Sport Club Rio Grande, em jogo que marcou a estreia de seu novo uniforme, comprado na Europa (Echo do Sul, 16/03/1909). A cidade de Rio Grande também recebia visita de agremiações do centro do país, da Argentina e do Uruguai. Quando elas ocorriam, o jornal costumava destacá‐las, tal como aconteceu na ocasião da visita recebida do Club Atlético Estudiantes da Argentina (Echo do Sul, 14 e 19/09/1910).
Outra prática que passou a fazer parte da cultura futebolística da época foram as “incursões”, ou seja, viagens dentro dos limites do município. Entre as “incursões” noticiadas pelo jornal estão a feita pelo FC Riograndense, em 1911, para o distrito da Vila da Quinta para enfrentar o Sport da Quinta (Echo do Sul, 28/09/1911) e a feita pelo Aymoré FC para a Ilha dos Marinheiros18, com o objetivo de organizar uma “imponente festa esportiva” (Echo do Sul, 07/10/1911).
As viagens e os passeios dentro do município, geralmente, incluíam outras práticas de lazer, como era o caso dos picnics (Echo do Sul, 25/11/1910 e 28/09/1911). Guardadas as devidas singularidades de cada época, as lógicas futebolísticas dessas “incursões” assemelhavam‐se ao que existe atualmente no futebol de várzea, em que vigora “uma lógica de reciprocidade que pode ser compreendida na relação do ganhar jogo, pagar jogo e ganhar visita” (Sppaggiari, 2008, p. 177)19.
Considerações finaisA pesquisa mostrou que de 1900 a 1916 a cidade de Rio Grande produziu uma singular cultura futebolística, representada pela fundação de agremiações que tinham distintos vínculos étnicos e socioeconômicos. Foi possível identificar também que a grande maioria dos clubes de futebol não tinha um único vínculo social. Os clubes se constituíram como agremiações capazes de aglutinar diferentes afinidades e representações sociais. Assim, clubes com vínculos étnicos também poderiam estar constituídos por componentes de classe social ou por vínculos geográficos, pertencentes a um determinado bairro ou uma certa região da cidade.
A identificação de 47 agremiações, noticiadas no Echo do Sul, de 1900 a 1916, mostra que o futebol, na cidade de Rio Grande, estava longe de se resumir a apenas àqueles clubes que alcançaram uma maior longevidade e reconhecimento na historiografia do futebol riograndino. Sem menosprezar a importância desses clubes, a pesquisa mostrou que, já nas duas primeiras décadas do século XX, a prática do futebol em Rio Grande ia da zona urbana para a zona rural, alcançava até lugares distantes do centro da cidade, como o distrito de Povo Novo, a Vila da Quinta e a Ilha dos Marinheiros.
Conclui‐se que na cidade de Rio Grande o futebol deixou de ser uma prática exclusiva das elites ainda no fim da primeira década do século XX, como ilustra a fundação do Sport Club São Paulo, em 1908, e a existência de um vigoroso futebol operário/fabril, já nas duas primeiras décadas do século XX. A partir de 1916 a atenção futebolística do Echo do Sul volta‐se para o Campeonato Municipal de Futebol, competição organizada pela Liga Rio‐Grandense de Football, que tem a sua primeira edição naquele ano. Todavia, esse futebol de campeonatos e ligas que, em Rio Grande, começa a ganhar musculatura a partir de 1916 e que, na década de 1930, conquista apenas três títulos estaduais, constitui‐se em tema para outros estudos.
Edições do jornal Echo do Sul04/08/1903, 17/08/1903, 25/08/1903, 03/09/1903, 05/09/1903, 08/09/1903, 10/09/1903, 28/09/1903, 29/09/1903, 05/10/1903, 13/10/1903, 14/11/1903, 05/09/1905, 13/11/1905, 29/08/1906, 03/09/1906, 17/09/1906, 19/09/1906, 20/05/1908, 03/08/1908, 27/07/1908, 28/071908, 1°/08/1908, 03/08/1908, 06/08/1908, 07/08/1908, 16/03/1909, 13/09/1909, 14/09/1910, 19/09/1910, 25/11/1910, 28/09/1911, 07/10/1911, 21/10/1911, 08/11/1912, 11/11/1912, 13/11/1912, 14/12/1912, 05/11/1913, 02/11/1914, 22/01/1915.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
O município do Rio Grande foi fundado em 1737 e está localizado no extremo sul do Rio Grande do Sul. No começo do século XX, se destacava por ser uma das principais cidades portuárias do país e por ter sido um polo estratégico no desenvolvimento de indústrias têxteis – Fábrica Rheingantz e Inca Têxtil (Amaral, 2011).
Rigo (2004) alerta que quase sempre que se fala da historiografia do futebol brasileiro há uma tendência de ressaltar os acontecimentos do eixo Rio de Janeiro e São Paulo em detrimento daqueles ocorridos fora desse eixo, como é o caso do RS, por exemplo.
Vários estudos assinalam o processo de instauração do profissionalismo como um marco importante na popularização do futebol brasileiro (Pereira, 2000; Santos, 2010; Souto Mayor, 2017).
Outros clubes, tais como o Flamengo do Rio de Janeiro, foram fundados antes de 1900, porém como clubes de regatas. O futebol nessas agremiações foi incorporado posteriormente, logo o Sport Club Rio Grande ostenta o título de clube de futebol mais antigo do Brasil, pois desde sua fundação dedicou‐se ao futebol.
Rigo (2004) salienta que em Pelotas também existiu um clube com essa denominação. Isso mostra que essa prática não foi um episódio isolado do município de Rio Grande.
Cesar (2012) ressalta que essa foi a data da fundação oficial do clube, entretanto o Echo do Sul de 13/09/1909, ressalta que o grupo de jovens que fundou essa agremiação já praticava futebol em 1898, em alguns casos jogava com outro grupo que acabou dando origem ao Sport Club Recreativo.
Em 1933 o SC São Paulo sagrou‐se campeão estadual ao vencer o Grêmio de Football Porto‐Alegrense na final por 2 a 1. Atualmente (2018) participa da primeira divisão do Campeonato Estadual.
Os campos existentes localizavam‐se ao lado das oficinas da ferrovia e dois estavam localizados atrás dos cemitérios, um de católicos e outro de não católicos, ambos cortados pela linha férrea.
Um caminho auxiliar que usamos para encontrar indícios da existência de clubes com vínculos negros e que serve como sugestão para outros estudos interessados nesse tema foram as relações que os clubes de negros de Pelotas mantiveram com clubes de Rio Grande. Isso é possível pela existência de estudos que apontam para a emergência de clubes de negros em Pelotas já em 1908 (Sport Club Juvenil). Mais considerações sobre a presença dos negros no futebol pelotense, ver Mackedanz (2016) e Mackedanz, Gil, Rigo (2015).
O distrito do Povo Novo localiza‐se entre os municípios de Rio Grande e Pelotas. O EC Esperança continua com suas atividades futebolísticas e anualmente participa do Campeonato Amador de Rio Grande. Para outras considerações sobre esse clube, consultar Mackedanz e Rigo (2015).
Os autores definem como excursões as viagens que os clubes fazem para fora de suas cidades‐sede (Damo e Ferreira, 2012).
Bagé tem aproximadamente 120 mil habitantes, fica no sudoeste do Estado do Rio Grande do Sul, distante 250km de Rio Grande, e é considerada uma das cidades de tradição do futebol do interior do estado. Entre os clubes de maior tradição da cidade destacam‐se o Guarany Futebol Clube, fundado em 19/04/1907 (campeão estadual em 1920 e 1938) e o Grêmio Esportivo Bagé, fundado em 05/08/1925, campeão estadual em 1925. Mais considerações sobre o futebol nessa região, ver Rigo (2013).
São José do Norte é uma península com cerca de 26.000 habitantes que goza de um campeonato municipal de futebol amador de grande tradição. Sobre isso consultar Cunha, Freitas e Rigo (2016).
A Ilha dos Marinheiros é um distrito do município de Rio Grande onde as principais atividades econômicas advêm da agricultura e da pesca. Outras considerações sobre o futebol na Ilha dos Marinheiros, ver Correia, Freitas e Rigo (2013).
Sppagiarri (2008) tem como referência para trabalhar essas lógicas as sociabilidades forjadas a partir de um clube de futebol amador rural. Assim, o time que recebe a visita deve retribuí‐la, ir jogar no campo da equipe que o visitou. É assim que se paga o jogo. O ganhar e o pagar usados pelo autor não se referem ao resultado da partida, tampouco a questões financeiras, mas aos códigos simbólicos pré‐usados pelos nativos do futebol de várzea.